Abaixo-Assinado (#51424):

Manifesto contra a adoção da Cogestão nas Unidades Socioeducativas de Minas Gerais

Destinatário: Publico em geral

Cogestão não!
(Um manifesto de integrantes do socioeducativo de Minas Gerais)
No início de 2018 foi anunciada a proposta de gestão do sistema socioeducativo
pela Fundação Caio Martins (Fucam), em um claro retrocesso da política, visando uma
reaproximação das práticas da antiga Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor
(Febem). Na época os servidores aderiram a um movimento grevista, reivindicando a
continuidade da execução da socioeducação na pasta da segurança pública, impedindo,
para tanto, a referida mudança. Desde então, esta pauta nunca saiu de cena. Dia 21 de
setembro de 2020 fomos surpreendidos novamente com a notícia de que 10 unidades
socioeducativas de Minas Gerais serão geridas na modalidade cogestão, funcionando
como projeto-piloto.
Tem-se que na cogestão cabe ao Estado e ao grupo privado o gerenciamento e a
administração conjunta do estabelecimento. Nesse modelo compete ao Estado a
indicação do Diretor-Geral da unidade, a quem compete o relacionamento com o juízo
da execução penal e a responsabilidade pela segurança interna e externa da unidade
socioeducativa. A empresa privada é encarregada de promover o trabalho, a educação, o
transporte, a alimentação, o lazer, bem como a assistência social, jurídico, espiritual e a
saúde física e mental do sujeito acautelado, vindo a receber do Estado uma quantia por
adolescente/dia para a execução desses serviços. Ou seja, a continuidade do trabalho
na modalidade cogestão está atrelada à existência de adolescentes autores de ato
infracional, tornando a internação destes indivíduos um interesse primordial
destas instituições.
Outrossim, Di Pietro (2002, p. 187) entende a terceirização como sendo "a
contratação, por determinada empresa, de serviços de terceiros para o desempenho de
atividade-meio". Ainda na concepção da mesma autora, a terceirização visa a liberação
do Estado da realização de atividades consideradas acessórias, permitindo que a
administração concentre suas energias e criatividade nas atividades essenciais. A ideia é
que nesse sistema a iniciativa privada se encarregue apenas da execução das
atividades-meio.
À vista disso, cabe problematizarmos os conceitos de atividade-fim e de
atividade-meio. Por atividade-fim entende-se o conjunto de ações que se confundem
com os objetivos da instituição, as quais são reveladas mediante a prestação dos
serviços realizados. Já as atividades-meio não correspondem ao objeto institucional, ou
seja, não compõem o propósito principal da organização. São apenas atividades de
apoio, necessárias para contribuir com o satisfatório andamento dos processos e rotinas
administrativas do negócio. Voltando tais definições para o campo da socioeducação, a
ressocialização sobressai como finalidade deste sistema, cuja operacionalização é
responsabilidade dos profissionais, caracterizando, portanto, o corpo
ocupacional como atividade-fim do sistema socioeducativo.
Desmembrando este raciocínio, cabe ponderar como a inclusão das funções
técnicas como atividade-meio na modalidade de cogestão engessam os adolescentes em
métricas muitas vezes não realizáveis. A associação da destinação dos recursos ao
cumprimento de metas tende ao distanciamento das singularidades, e à formatação de
sujeitos padrões. Porém, o intento da socioeducação propõe justamente o contrário,
sendo o estímulo à particularidade o encontro de respostas possíveis para cada sujeito.
Um exemplo disso é o eixo profissionalização. Deparamos com adolescentes cujas
trajetórias se voltam para questões familiares, ou de saúde, por exemplo, ficando a
profissionalização como plano futuro. No caso de metas obrigatórias, estas forçariam à
adaptação dos sujeitos aos ideais institucionais, escapando inevitavelmente as
individualidades, e com elas, o alcance de mudanças significantes nas histórias de vida.
Ademais, na cogestão a administração é feita em sistema de gestão mista,
ficando a supervisão geral dos estabelecimentos com o setor público, cuja atribuição
básica seria a de supervisionar o efetivo cumprimento dos termos fixados em contrato.
Porém, é possível a transferência da administração das prisões sem que isto implique a
retirada da função jurisdicional do Estado, a qual, vale ressaltar, é indelegável. Vale
esclarecer que a função jurisdicional corresponde à determinação da medida
socioeducativa, do tempo de privação de liberdade, assim como o seu respectivo
desligamento.
Esta composição encontra limites práticos, já que a presença ínfima de
representantes do governo não se revela suficiente para materializar a submissão da
unidade socioeducativa ao Estado, uma vez que os demais funcionários tenderiam a
reportar ao seu chefe imediato, o qual é funcionário da empresa privada. Neste sentido,
as chefias podem omitir ou suprimir fatos não favoráveis à sua “empresa”, posto
que o alcance das metas é condição sine qua non para a continuidade do seu
trabalho. Assim, metas tenderiam a serem priorizadas em relação ao compartilhamento
real das práticas intramuros (as quais, como defende Goffman, já apresentam uma
tendência ao fechamento), limitando avanços e desenvolvimento do sistema. Outro
aspecto basilar diz respeito ao vínculo empregatício com empresas privadas, que
reduzem sobremaneira as ações grevistas, ante a possibilidade de demissão, inserindo
os funcionários em uma relação de conformação à rotina.
Logo, a cogestão traz campo fértil para a supremacia do interesse privado
em detrimento do interesse público. A eficiência é princípio norteador da
administração pública, e a sua concretização não encontra maior espaço quando
delimitado por noções gerenciais e privadas, as quais sugerem uma adaptação das ações
em metas verificáveis, primando pelo número a despeito da qualidade. Em oposição a
esta concepção mercadológica, a dificuldade do alcance de uma meta pode favorecer o
desenvolvimento do sistema, ao revelar seus impasses e dilemas cotidianos, todavia, o
formato cogestão traz uma predisposição a uma aniquilação de tais conteúdos.
Quanto à questão do princípio da eficiência, este coaduna-se com os princípios
da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. No caso de uma unidade
privada, a eficiência tem maior aproximação ao aumento do número de acautelamentos
ou de ressocializações? Tendo em mente o interesse público de menores taxas de
encarceramento, tratamento digno aos sujeitos privados de liberdade e menor gasto
público com prisões, é imprescindível o questionamento: quanto uma empresa de fato
estaria interessada na ressocialização de um adolescente frente ao lucro que obtém de
seu confinamento? Não há dúvida: diante da transferência para a lógica do privado, o
princípio prevalente é o lucro e a eficiência torna-se acessória.
Atualmente a medida socioeducativa de semiliberdade de Minas Gerais e as
unidades de internação de Patrocínio e de Passos funcionam na modalidade cogestão.
No dia a dia, estas instituições encontram uma série de limitações. A começar pela alta
rotatividade de profissionais (dada a flexibilização dos direitos trabalhistas), imperando
a descontinuidade do trabalho, e a fragilidade dos vínculos com os adolescentes. A
defasagem profissional persiste, a despeito da preservação das metas. Verifica-se o
apelo aos números em detrimento à qualidade, predominando noções de produtividade,
contudo de forma superficial. Nota-se também a falta de conhecimento técnico dos
profissionais ocupantes dos cargos de chefia, sugerindo o caráter pessoalizado das
indicações, tornando tais sujeitos institucionalizados. As falhas verificadas são veladas
no cotidiano, uma vez que o profissional que as reporta arrisca o seu vínculo
empregatício. Assim, críticas são inibidas na rotina institucional. Sabendo dos inúmeros
dilemas e contradições oriundos da privação de liberdade, a censura aos profissionais
silencia a possibilidade de progresso, assim como a resolução de entraves.
Além disso, abrem-se brechas para a descontinuidade do serviço ante a rescisão
contratual, visto o exemplo do Programa Se Liga, cujas atividades foram interrompidas
por período superior a um ano, e a Política de Prevenção à Criminalidade de MG, alvo
constante de reduções e questionamentos. Inclusive, inclui-se aqui um adendo. A
hipótese por detrás da Política de Prevenção seria a diminuição das taxas de
encarceramento, supondo a prevenção como ação mitigadora dos fatores de risco.
Contudo, observa-se como a trajetória desta Política coincide com o aumento das
medidas e das penas alternativas, simultaneamente ao incremento do aprisionamento,
revelando-se, para tanto, uma expansão do punitivismo penal para determinadas
camadas sociais. Redobra-se a atenção se considerarmos que a Política de
Prevenção é gerida pela modalidade de cogestão, e que o aumento de atendimentos
reverbera na possibilidade de ampliação de suas ações. Ou seja, o aumento do
público atendido é sinônimo de maior verba orçamentária. Ressalta-se ainda o
princípio licitatório pelo menor custo, o que nem sempre coincide com a qualidade.
Como único ponto positivo cita-se a celeridade e a facilidade para o acesso a recursos
materiais, fato que a organização logística do Estado pode resolver.
Dito isso, tem-se que por trás da opção pela cogestão estão as premissas de
diminuição do gasto público e a maior eficiência da gestão. A crise financeira do Estado
surge como discurso narrativo para a adequação orçamentária, e o recrudescimento da
criminalidade aparece como fundamento para alterações na forma de gestão. Contudo,
tais argumentações não estão ancoradas em pesquisas, mas em percepções dos atuais
ocupantes de cargos hierárquicos da Subsecretaria de Atendimento às Medidas
Socioeducativas (Suase) e outros integrantes do Sistema de Justiça Juvenil, como o
Ministério Público.
À revelia disso, não é raro notarmos menções ao Estatuto da Criança e do
Adolescente (Eca) e ao Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase)
como legislações avançadas no que tange às medidas socioeducativas. Entretanto, a
operacionalização destas leis esbarra em limitações de ordem moral, cuja origem em
grande parte tem correlação com a governança do sistema. Neste escopo, os gestores da
Suase apresentam grande capacidade de direcionamento das ações, as quais dependem
de sua interpretação da política. Ou seja, apesar dos 30 anos do Eca ainda nos
encontramos reféns da parcialidade dos gestores, sem o alcance técnico e profissional da
socioeducação, o que só é possível via efetivação de concursos públicos, pautados pela
impessoalidade e pela eficiência.
Disso extrai-se que a associação entre má gestão do socioeducativo e o nível
de reincidência não está situada entre pesquisas empíricas, mas em assimilações de
alguns grupos sociais. Da mesma forma que o questionamento da qualidade da
socioeducação não traz dados experimentais como fundamento. Assim sendo, a
proposição da cogestão da socioeducação revela uma tentativa de mercantilização desta
política pública, sem interesse na ressocialização, e sem amparo científico voltado para
a demonstração de um comparativo entre unidades estatais e unidades sob cogestão.
Referências bibliográficas
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal 8069, de 13 de julho de 1990.
______. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. Lei 12.594, 18 de janeiro 2012
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública. São Paulo: Atlas, 200

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